Quando o escorpião se torna serpente
Assim como a semente, eu não sei para onde ir. Crescer, quebrar a casca me parecem abstratos demais aqui no escuro. Tenho medo de forçar a saída e seguir na direção oposta à superfície. Mas como seguir sem se perder em si, sem mergulhar demais e acabar perdendo de vista os raios de sol?
Como um grande útero, a terra recobre o meu ser e me trás sensações inesperadas, algumas partes mais mornas tocam minha pele antiga. E assim como a semente, partes de um eu antigo ainda estão presos na carne. A pele velha apodrece e escurece e pouco a pouco começa a pesar. Como arrancar sem machucar? Eu não suporto mais este peso… A pele nova passa a nascer mas não sem força suficiente para fazer a antiga se desprender. Terei de puxar com as mãos.
Sufocada, eu sinto as lágrimas molharem a pele e ao redor do rosto. Sinto uma ponta de vontade de viver, mas não sei sair daqui. Preciso tomar uma decisão, não caibo mais neste espaço. O escuro me assusta, começo a ver e ouvir coisas que talvez não existam. Então forço meu corpo a se esticar. Pernas e braços sangram. A pele nova não suporta e rompe em pequenas cicatrizes, mas tudo bem, é o preço de crescer. Tudo dói, a alma dói. O ego se estilhaça. Ninguém virá ao meu resgate, ninguém olha por mim a não ser… eu.
E dou um pontapé, e procuro uma porção de terra mais seca para me agarrar. Enquanto subo vou puxando a pele morta e ela se desprende com muito sufoco, apertada, estrangulando onde se acumula. A raiva irrompe no meu peito e de repente, sem mais paciência ou delicadeza, eu mordo a pele suja e rasgo o que dá com os dentes, uma das mãos puxa a outra tenta rasgar mais. E sangra. Sangra muito. Me vejo lavada em vermelho e a cada nova camada que se desprende a ardência do lugar se abranda e começa a secar. Acho que nessa posição eu não sinto mais vontade de vomitar, devo estar de pé. Então eu puxo a terra para debaixo das mãos. E escalo a pele morta, os cabelos, os ossos… Escalo meu antigo eu, sinto dor, quero chorar. Então eu choro muito até me sentir vivo outra vez. Estou mais próxima do fim, sinto um cheiro diferente. Me parece… orvalho?
Meus olhos ardem demais. Um brilho, uma luz intensa ao extremo me fazem nausear e doer a cabeça. Pouco a pouco a retina se acostuma. Olho ao redor e penso: talvez… Eu acho que consegui. vejo meus braços enegrecidos de barro, sangue e suor. Vejo o que sobrou das unhas, estilhaçadas, cheias de sujeira. Não quero nem saber como está o resto. Talvez eu não precise. Acho que eu só quero tomar um banho e esperar o sol se por.
