Sou filha de Oxum

e o meu espelho é você

Louise Nazareth
7 min readSep 10, 2019
Mamãe Oxum

Para quem conhece, para quem se interessa, as religiões de matriz africana nos remetem a conexão com a natureza de um jeito diferente. Viver o orixá, na minha visão, é viver alinhado com o mundo natural, com o sutil, com você e o outro. E, tanto dentro da umbanda quanto do candomblé, o respeito aos arquétipos das mais variadas divindades nos conecta com essências primeiras, com sentimentos puros e ao mesmo tempo com algo dentro de nós que nem sempre queremos ver.

Eu sou filha de Oxum. Isso significa que em minha coroa espiritual, na minha guiança espiritual, essa divindade faz parte da minha essência energética. Da minha vida desde a matriz do meu nascimento. Conhecendo suas características a princípio me deparei com uma insatisfação muito profunda, pois, sendo a Mãe do Amor e da Prosperidade, da doçura, do acolhimento, da riqueza espiritual e material, como posso eu ser filha sem nem mesma eu tenho tais características? Com o tempo percebi que o mundo é limitado em vocábulos para nos fazer compreender a grandeza de uma presença energética tão ampla e tão completa. Cada orixá, cada representação, cada arquétipo, cada santo, é uma egrégora em si, que juntos formam uma camada densa de luz e de significações que nossos olhos humanos não são capazes de entender.

É preciso sentir.

Serena Assumpção, Oxum

Sentir não é uma experiência vaga. Sentir é ir além do vocábulo, das representações, das membranas que permeiam nossa comunicação de maneira estrita. Sentir é se perceber, saber como seu corpo reage a um toque, a um abraço. Você consegue descrever 100% dessa experiência? Como é abraçar alguém que você gosta…, e que não gosta? Qual é o sabor de uma melancia? Qual a sensação física de fazer sexo com uma pessoa querida?

Não dá para descrever, é preciso empatia.
É preciso abstrair.

Na história do meu orixá, Oxum possui um espelho. Para muitos é a representação da vaidade, de se olhar, de se enfeitar para depois poder seduzir. Entendo que isso pode sim ser uma faceta, uma maneira de compreensão. Da mesma maneira que, humanamente falando, usamos um espelho para nos limparmos, arrumar o rosto/o corpo, contemplar. Mas o espelho também tem outra função, e é nesta outra que eu me debruço agora. O espelho é literalmente o reflexo de quem somos. Sendo óbvio ou não, quando pensamos de maneira mais sensível sobre o assunto, olhar um espelho psíquico mostra o que somos, reflete a nossa verdade no momento atual. O que sentimos, o que acreditamos e o que pensamos. Imagina você agora podendo ver os detalhes dos seus sonhos! E dos seus medos? Dos seus defeitos…

Olhar para essas coisas dói, né?

Então, no meu entendimento, Oxum como a deusa do amor, trás o espelho consigo para que possamos aprender a olhar para dentro de maneira amorosa. Talvez ela esteja se embelezando sim mas para si. Para a sua bel admiração porque existe amor ali, amor próprio.

Não é necessário agir com tanta energia se as coisas não estão caminhando como você gostaria. Ao meu ver, desacelerar e começar a se perceber como indivíduo, seja você homem ou mulher, é o que realmente importa. Se vamos conseguir romper aquelas barreiras, superar alguns desafios? Na real, nem sei se importa tanto assim, talvez as nossas atitudes que nos tiram da inércia sejam mais importantes e reverberem em novas sintonias, que o nosso caminho vai se ajustando sozinho. “Sozinho”, com um pouco de: eu me esforço para me compreender e ser mais amável comigo mesmo e um pouco de: não adianta estressar, o tempo vai passar de qualquer jeito então quero estar na minha melhor versão de mim. Deixa rolar. E deixa mesmo.

Deixa rolar… o tempo é o melhor mestre da vida.

Tudo acontece no momento em que acontece, nada a mais ou a menos. Se agora um pássaro canta, é agora que deve cantar. Se você espirrou nesse momento, era neste momento que deveria acontecer. E digo isso porque a vida é vasta em possibilidades, em coisas boas e más, e na real… esse juízo de valores de bom e ruim somos nós quem determinamos de acordo com as crenças e lições de vida que acumulamos. Nada é tão rígido assim. Em muitas culturas, o uso do branco significa luto e não o preto. Em outras, arrotar na mesa durante a refeição é ok. Já em algumas outras, é importante cuidar dos cotovelos ao comer, e tá tudo certo.

E está mesmo!

Quando pinta uma dúvida no cenário mental, o melhor a fazer é pesquisar. Vai atrás de entender, vai atrás de saber o quê é, e faça isso com você mesmo também. Tem coisas aí dentro que não são suas, são vozes que não são suas, são sonhos que não são seus, são medos, desejos, pesadelos que foram parar aí dentro e que agora merecem seguir outro rumo, e você o seu.

Cada coisa na vida acontece em um momento. E cada momento é único porque o tempo é o único bem que temos que não volta. Seja ele circular, linear, não interessa muito… Você não consegue voltar no tempo e “desdizer” uma merda para alguém que ama. Você não consegue pausar o tempo para aproveitar mais um segundo com aquela pessoa que morreu dias depois. E mesmo que conseguisse fazer tudo isso, teria tanto valor? Sendo certo ou errado, o que você fez no passado, o que você faz nesse exato momento teria (ou tem) valor se você soubesse que pode voltar e corrigir infinitamente até ficar perfeito? A resposta é clara: não.

Não teria valor.

Não teria valor porque o tempo é o tempero especial que nos faz pensar que momentos são únicos e que não voltam mais. Por que você faz milhões de planos naquela brincadeira: “se você morresse amanhã, o que faria hoje” e não faz o que tem vontade? De repente o seu hoje é o último mesmo, e tá tudo bem com isso também, mas a questão é outra: olhar para os espelhos da vida dói. Olhar para a vida como ela é sob o viés da ilusão, das expectativas, dói mais ainda. Viver dói, nesse sentido. E dói também quando olhamos uma pessoa que tem traços mais evoluídos do que nós, ou sentimos raiva e inveja, ou nos colocamos para baixo deliberadamente. E porque, hein coleguinha? Porque o outro também se faz espelho quando não queremos olhar para dentro.

Olhar o outro em sua manifestação individual também serve de espelho. Mas o quê sentimos à partir disto é problema completamente nosso.

E voltando a questão dos orixás, Oxum me faz pensar nos espelhos infinitos espalhados ao meu redor. Meus amigos, colegas de trabalho. Minha família, meu cachorro, o motorista do Uber e do busão. O cruch, a bad, a solidão. Tudo é um grande espelho, o que miro nele é um traço daquilo que a minha percepção seleciona no momento. Posso olhar alguém e me sentir inferior porque sou mais gorda ou mais pobre. Posso me sentir péssima porque meu cabelo é menos hidratado ou menos estiloso. Posso sentir raiva porque aquela pessoa tem um comportamento tão pedante que dá vontade de bater! Aaah! de arrancar-lhe os dentes.

E porque isso, jovem?

Porque tudo dentro de nós reflete no que está fora, e vice-versa.
O que está dentro, está fora.

A raiva que sinto em mim, projeto em outrem. O medo, o desejo. Até o tesão. Mesmo sendo um fator biológico, começa na nossa cabeça, na libido. E de cabeça ruim, vai mesmo transar? Claro que não! Não se toca, não se aprecia, não se ama, não se entende, não se conhece. E sendo assim, não reflete para fora porque não tem isso dentro de si. Quantos casais frígidos, sem amor? Amor, pelo menos o romântico, é uma invenção relativamente moderna na sociedade. Veja bem, amor não significa ficar juntos a vida toda, significa acima de tudo: respeito. Quantas moças em busca de um namorado e só encontram os trem véio da vida porque não se olham.

Então eu digo: olha, moça, tem tanto amor dentro de você. Tem tanto de você que você precisa amar e conhecer, não se dê para alguém pensando que esse alguém vai te ajudar. Precisa vir de você.

E tantos rapazes também, buscando entender esse turbilhão de coisas em meio a uma sociedade machista e misógina: qual o meu papel nisso tudo, como não ser babaca? e por aí vai.

Ou seja, o mundo é um caos, mas a gente pode ser um pouco menos caótico as vezes.

Você não precisa ser um caos para refletir o que está fora. Começa diferente, aceita esse espelhinho. Vai dançar no pé da cachoeira e se banhar de amor. Vai dançar na natureza e se permitir enxergar a prosperidade emocional que há a sua volta. Riqueza pode ser tudo. Tudo mesmo! Pode ser uma família feliz, mesmo que humilde e passando perrengue pra caramba. Pode ser um namoro tranquilo. Pode ser um grupo de amigos que te aceitam como você é, mesmo sendo super chato de vez em quando (risos com respeito…). Tá tudo bem. E tá mesmo. Riqueza material pode ser um lugar seguro para dormir. Seja longe da rua, seja longe de um abusador na calada da noite. Pensa comigo, mamãe Oxum é que tinha razão, amor e prosperidade não nos faltam quando percebemos quem verdadeiramente somos por dentro.

O meu espelho é você ❤

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Louise Nazareth

Crônicas para compreender, transformar. Por uma vida anti-rótulos, liberta. Escrita livre para desabafar, entender, passar um tempo.